Garimpagem CineBliss: "Nunca, raramente, às vezes, sempre" apropria-se com segurança e sensibilidade da questão do aborto na juventude


Em 2007, o Festival de Cinema de Cannes destinou o prêmio máximo para o filme romeno "4 meses, 3 semanas e 2 dias", do diretor Cristian Mungiu, cuja narrativa penetra na questão do aborto clandestino no final do regime comunista, e retrata de forma crua as múltiplas violências em relação ao corpo feminino. Em "Nunca, raramente, às vezes, sempre", da diretora Eliza Hittman (Beach Rats), o mesmo tema ganha destaque, mas transita no diferencial da violência ser abordada em camadas sutis e o procedimento ter o aval legal do Estado.

Ambos os títulos têm como premissa uma jovem decidida à interromper a gravidez. Se no caso romeno, a intervenção cirúrgica é norteada por um caminho espinhoso por conta da criminalização do ato sob pena de cadeia. No caso da narrativa americana, a protagonista Autunm (Sidney Flanigan) necessita deslocar-se de ônibus de sua localidade rural, no estado da Pensilvânia, até a cidade de Nova Iorque para a realização do aborto. Ao lado de sua prima Skylar (Talia Ryder), as duas embarcam numa jornada embasada por imprevistos, na contenção de sentimentos e dos poucos diálogos que travam entre si.  
 
Da mesma forma que  "4 meses, 3 semanas e 2 dias", a jovem grávida partilha de uma amiga apta em ajudar de todas as maneiras para o comprimento do abortamento. Em "Nunca, raramente, às vezes, sempre" essa demonstração de solidariedade e acolhimento também é vista por parte de certos comportamentos de Skylar. Seja em beijar um rapaz sem realmente querer, seja em furtar uma quantia de dinheiro ou em empurrar e carregar a mala pesada por diversas escadas. E, em ambos os filmes o final assemelha-se em não só destacar essa amizade feminina frente à uma situação tensa e marcante, como também no ato de comunhão em uma mesa de restaurante.

Enquanto tal, as diferenças que norteiam as duas narrativas se fazem presentes em várias questões. Desde o mais óbvio em estarem inseridas em países ou contextos econômicos distintos quanto até mesmo na abordagem da violência. O título oriundo do leste europeu opta pela câmera expor a brutalidade da negociação das duas jovens com o médico. Já nas terras do tio Sam, esta mesma câmera confidencia a intimidade da jovem grávida quando esta responde a um questionário de uma funcionária da clínica apenas com as opções de respostas: "Nunca, raramente, às vezes, sempre". Em ambas as cenas, o grau de acometimento se dá em níveis variados, todavia suas vulnerabilidades, intimidades, desamparos e inquietações respingam da mesma forma.
 
A cineasta e também roteirista do longa-metragem conduz de forma primorosa a trama sem deixar-se ludibriar para qualquer tipo de julgamento em relação a escolha de Autunm. Tanto que não há menção da figura paterna em virtude da decisão caber apenas à personagem grávida. Na verdade, o filme com um olhar sensível arremessa o espectador para os diversos entraves ao qual a gestante é obrigada a submeter-se (procedimentos médicos, burocráticos e financeiros) para realizar uma escolha referente a seu próprio corpo.
CineBliss*****
 
"Nunca, raramente, às vezes, sempre" disponível em: Telecine Play  

"4 meses, 3 semanas e 2 dias" disponível gratuitamente em: YouTube
   

Ficha técnica: 

Nunca, raramente, às vezes, sempre (Never Rarely Sometimes Always)
Estados Unidos/Reino Unido, 2020
Direção: Eliza Hittman
Roteiro: Eliza Hittman
Elenco: Sidney Flanigan, Talia Ryder   

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