"Os miseráveis" fervilha a realidade de uma tragédia anunciada


O filme francês laureado com o Prêmio do Júri do Festival de Cannes 2019 (conquista dividida com o brasileiro “Bacurau”) e indicado ao Oscar 2020 de Melhor Filme Internacional, "Os miseráveis" (2019), do diretor Ladj Ly, estreia amanhã nas telas de cinema do Brasil. Com um início nutrido pela união e euforia frente à vitória do time de futebol da França na última Copa do Mundo, a narrativa desloca os olhares para a realidade do bairro Montfermeil, nos subúrbios onde Victor Hugo escreveu seu famoso romance "Les Misérables", quando chega um novo integrante ao time Esquadrão Anti-Crime, Stéphane (Damien Bonnard).

Junto de seus dois colegas de trabalho Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djibril Zonga) - ambos já experientes e camaradas dos moradores -, os três fazem a ronda cotidiana pelo bairro e a cada esquina observam as tensões borbulhando nos olhares das pessoas. Em uma abordagem desastrosa, eles são filmados por um drone e, para acobertar o fato, recorrem a todos meios coercitivos possíveis. Isso, injeta mais combustível danoso em uma comunidade já tomada pelo descaso social e pela violência. 

Com o uso recorrente de imagens áreas do bairro Montfermeil, o diretor ambienta a audiência para a precariedade e falta de opões desse local. Como exemplo, visualiza-se em várias sequencias o esporte, em particular o futebol, como uma das únicas recreações para a juventude. Esse grupo social, com o recorrente lema de 'futuro de uma nação' vê-se desprovido de amparo, e torna-se a parcela mais suscetível ao desacato de autoridades e pessoas com poderes. Várias cenas do filme são um tanto quanto familiares para a realidade brasileira e também em obras cinematográficas, quiçá "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles.

A tecnologia tem um papel fundamental em toda narrativa. Por meio dela é possível identificar suspeitos de infrações, espiar a vizinha ou até mesmo gravar certas agressões físicas. O uso de dispositivos tecnológicos e redes sociais alimenta com maior intensidade o balé das tensões que vão dando vazão para uma tragédia anunciada.  

Assim como Spike Lee fez em 1989 com o primoroso "Faça a coisa certa", em que prioriza num primeiro momento a familiarização com os moradores, para aos poucos inflamar seus diálogos com uma crescente inquietação, a obra francesa também faz caminho semelhante. O público é conduzido na viatura por um tour pelos arredores do bairro e arremessados nos conflitos internos dos habitantes locais. Uma das diferenças entre as duas obras consiste no sujeito da narração: a primeira é centrada num grupo de pessoas residentes do bairro do Brooklyn (NY), enquanto a segunda, é na maioria das vezes, nos policiais.  

"Os miseráveis", orquestra de forma concisa e coerente os eventos truculentos e arrebatadores que fazem parte da rotina dessas pessoas à margem da sociedade e, consequentemente, representam a camada mais vulnerável às mazelas. Esse retrato cru de uma área específica de Paris, sucede num final de tremenda reflexão, crítica social e um doloroso soco no estômago. 
CineBliss*****


Ficha técnica: 

Os Miseráveis (Les Misérables)
França, 2019
Direção: Ladj Ly
Roteiro: Ladj Ly, Giordano Gederlini, Alexis Manenti
Elenco: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djibril Zonga

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