"A vida invisível" reverbera a condição de inúmeras mulheres brasileiras oprimidas por uma sociedade machista



A tão aguardada estreia nas telonas do filme brasileiro "A vida invisível", laureado em Cannes com o prêmio máximo na Mostra Um Certo Olhar e representante do país para disputar a uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional, acontece hoje nas principais salas de cinema. O melodrama dirigido pelo cearense Karim Aïnouz, proporciona um mergulho na jornada das duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte), 18, e Guida (Julia Stockler), 20, quando estas têm seus destinos separados por ordem da figura paterna.

Numa Rio de Janeiro nostálgica, da década de 1950, encontra-se Eurídice persistente no sonho de tornar-se uma pianista profissional, mas que mesmo assim segue as expectativas de seus pais. Enquanto Guida, saí em busca de viver o grande amor. Os desarranjos de trajetórias impostos pelos grilhões da dominância masculina, lança fagulhas de esperança no coração de cada uma para terem forças de desafiarem sozinhas todos os obstáculos que impedem o tão sonhado reencontro. 

Karim Aïnouz, torna-se visível a ausência de voz dessas personagens femininas num período em que o sistema patriarcal - domínio masculino e submissão feminina - estava entrelaçado em todas as estruturas da sociedade brasileira, e o quão esse fator impedia o desenvolvimento da mulher como ser ativo e participante no espaço público e privado. 

O mérito de "A vida invisível", é observar essa opressão em relação às mulheres sob os olhares das duas protagonistas que encontram-se inseridas em níveis sociais distintos. Se de um lado, tem-se a mulher idealizada pelo modelo patriarcal como recatada, dona de casa, mãe, casada com um homem trabalhador e 'bom', e pertencente numa classe média. Do outro lado, há a figura feminina que trabalha fora de casa, mãe solo, que sente desejo sexual, solteira e à margem da sociedade.

Essas discrepâncias de jornadas femininas presas em armadilhas que estão além de seus controles,  é acompanhada de escolhas técnicas que prezam pelo realismo. Quiçá a sequencia da primeira noite sexual de Eurídice com o marido Antenor (Gregorio Duvivier), exposta de forma crua, sem encanto e um tanto quanto violenta. Do mesmo modo, a maternidade também não é vista com pinceladas de glamorização. Pelo contrário, observa-se esse evento como algo ocorrido pelo acaso na vida das protagonistas, sem opção de escolha e que cabe à elas lidar de modo positivo ou negativo com esse 'destino natural'. Não há o suporte da figura masculina.

Há de salientar o trabalho impecável de ambas as atrizes, Carol Duarte e Julia Stockler, estreantes em longas-metragens cujas interpretações profundas e tocantes reverberam a condição solitária, desoladora e em alguns casos conformista, de milhares de mulheres brasileiras tanto na década de 1950 como possivelmente até hoje. Por último e não por menos, a participação especial da atriz Fernanda Montenegro como Eurídice mais velha, carrega um peso de dramaticidade e emoção para uma das sequencias mais impactantes da narrativa.

Ao injetar como combustível da história a jornada de busca de Eurídice por Guida e vice-versa como uma fuga de suas próprias realidades, "A vida invisível", possibilita a reflexão de quantas mulheres foram e ainda são invisibilizadas devido ao caráter repressivo de poder aplicado contra elas. Um cinema brasileiro pautado pela sofisticação, inquietação artística e apreço à um tema social relevante.
CineBliss*****




 
Ficha técnica: 

A vida invisível (A vida invisível)
Brasil, 2019
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Murilo Hauser     
Produção: Rodrigo Teixeira     
Fotografia: Hélène Louvart (AFC)    
Montagem: Heike Parplies (BFS)    
Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregorio Duvivier, Bárbara Santos, Flávia Gusmão, Fernanda Montenegro

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