"Porque nem Kit ou Port haviam vivido uma vida normal...eles cometeram o erro fatal de ignorar o tempo. Um ano era como outro qualquer. Eventualmente, tudo iria acontecer." (Paul Bowles)
Início o post do filme O céu que nos protege com a citação acima do autor Paul Bowles do livro que inspirou a obra cinematográfica de Bernardo Bertolucci pois para mim é a essência tanto do filme quanto de nossa própria vida. O ser humano principalmente quando jovem acredita que os dias, as horas, o tempo não se esgotarão, somos arrogantes ao ponto de achar que amanhã teremos a oportunidade de fazer melhor ou diferente ou a mesma coisa. Conforme vamos envelhecendo somos arremessados para a certeza de que a única coisa que temos é o momento presente, algo de extrema importância, mas ao qual preferimos olhar para o futuro ou passado, deixando de lado o agora.
Essa arrogância do ser humano em ignorar o tempo é bem descrita no filme O céu que nos protege ao qual um casal Kit (Debra Winger) e Port (John Malkovich) com um amigo Turner (Campbell Scott) se aventuram em Tangier na África logo após a II Guerra Mundial em busca do desconhecido, do exótico, do diferente, mas ao mesmo tempo fechados para esse novo. Contudo por mais inconsciente que eles estejam sobre essa jornada, a vida com suas surpresas traz a cada personagem a sua transformação e o enfrentamento com o fator tempo.
Assim que os três chegam em Tangier, eles esclarecem a diferença entre um turista e um viajante: "...um turista quando chega a um lugar já quer ir para casa, enquanto um viajante pode nunca mais voltar". Turner se intitula como turista, mas Kit se diz estar no meio desses dois termos já Port com um ar mais seguro demonstra estar do lado do viajante. Com certeza uma dica para o público entender o desenrolar da história.
O trio se aventura por cidades africanas completamente diferentes de suas origens, a metrópole Nova Iorque. Nesse local exótico, a miséria, a falta de comunicação, as doenças, os desconfortos são alguns dos elementos que compõem a realidade, assim como a beleza das areias do Saara que enchem os olhos de contentamento.
O casal que no início tem relações sexuais extraconjugais mostra uma resistência a entrega total ao amor, como se tivessem o tempo da vida toda para falar e viver sentimentos que nutrem um pelo outro. Para mostrar esse vazio amoroso entre os dois o diretor traduz com belíssimas imagens do deserto do Saara e variações de cores. A imensidão das areias desérticas sem a fluidez de água, representa na linguagem simbólica a incapacidade de nascer algo novo, de como estão fechados um para o outro.
Em busca de uma aproximação, Port despista Turner e adentra pelo continente africano apenas ao lado da esposa, mas o que para eles era apenas a questão de visitar cidades muda completamente quando Port contrai febre. Aos cuidados de Kit eles se refugiam em um forte para que ele venha a melhorar. Em um de seus delírios Port declara todo seu amor e percebe-se o quanto ele procura reencontrar a paixão por Kit, mas devido a doença, falece sem ter o tempo para viver essa história de amor. Ela que até então não sabia ficar sozinha, se vê sem ninguém, desamparada no meio do deserto do Saara.
Kit abandona praticamente toda sua bagagem, ou seja, joga fora sua identidade e morre simbolicamente para renascer na cultura local e numa jornada em busca de si mesma. Ela é resgatada por um grupo de viajantes que não falam sua língua, a comunicação se faz praticamente pelos olhos. Um dos líderes acolhe Kit e se envolve sexualmente com ela, levando-a para morar em seu território junto com suas outras mulheres.
Para Kit, estar ali é indiferente a estar em qualquer outro lugar, pois o seu processo é interno, nesse esconderijo ela vive seu período de luto, em tentar lidar com o falecimento do marido, que para ela era o seu porto seguro, conforme o próprio nome do personagem sugere, Port, que em inglês é porto.
A jornada feminina de Kit que no começo do filme via a vida com certo ar de tédio, após a morte de Port muda completamente, ao ponto de no final responder ao autor Paul Bowles que lhe pergunta se ela está perdida, e ela diz " sim...", pela resposta a personagem mostra a sua profunda transformação e que agora está aberta para o novo, pois estar perdida é o melhor caminho para se achar.
O lançamento em 1990 de O céu que nos protege gerou muitas críticas por não estar parecido com o livro de Paul Bowles, mas há que reconhecer no filme elementos belíssimos como: os planos longos, a trilha sonora melancólica, as paisagens deslumbrantes, as tomadas panorâmicas, as atuações de Debra Winger e John Malkovich que traduzem lindamente essa história de amor.
CineBlissEK
Curiosidades:
- Paul Bowles é autor do livro ao qual foi inspirado o filme e faz uma participação especial como narrador da história que aparece em três momentos;
Ficha Técnica:
O céu que nos protege (The Sheltering Sky)
1990, Reino Unido/ Itália
Direção: Bernardo Bertolucci
Roteiro: Bernardo Bertolucci, Mark Peploe
Produção: Jeremy Thomas, William Aldrich
Fotografia: Vittorio Storaro
Elenco: Debra Winger, John Malkovich, Campbell Scott, Timothy Spall
Comentários
Postar um comentário