"Bela Vingança" alfineta sem pudor as engrenagens patriarcais que conspiram a favor dos homens

Ainda sem data de estreia no Brasil, o filme "Bela Vingança" (2020) da diretora Emerald Fennell, desponta como um dos grandes lançamentos deste ano no meio cinematográfico por conta de uma trama perturbadora e atual, que transita pelos gêneros do terror, da comédia romântica e do suspense. Indicado em quatro categorias do Globo de Ouro 2021 incluindo Melhor Filme Drama, Melhor Atriz, Melhor Direção e Melhor Roteiro, o longa-metragem nutre-se do complexo de Cassandra da mitologia grega, para alfinetar sem pudor as engrenagens do sistema patriarcal ocidental. 

Assim como no mito, a protagonista chama-se Cassandra (Carey Mulligan), uma jovem mulher prestes à completar seus trinta anos de idade que ainda mora com os pais, trabalha como atendente em uma coffee shop e não tem nenhuma relação afetiva. Se essa descrição beira ao tédio, nada se compara à vida dupla da personagem. Uma vez por semana, ela simula estar bêbada em uma balada, quase inconsciente, para supostamente ser 'salva' por caras 'legais'. Por trás desse jogo emblemático, ela deflagra várias retaliações contra esses homens sem utilizar de nenhuma arma de fogo ou força muscular, apenas seu cérebro.

Todavia, Cassandra carrega em seu âmago uma ferida profunda que a corroí com veemência, ao ponto dessa dor ter-lhe custado todas as suas aspirações como médica e estacionado sua vida no estágio universitário. Não é à toa que o título em inglês "Promising Young Woman" - tradução livre "Promissora Jovem Mulher" -, seja mais condizente com o labirinto nauseante ao qual a protagonista imerge sem perspectiva de saída para um futuro promissor, uma vez que isso lhe fora aniquilado. Se ao jovem homem lhe é proporcionado o direito da dúvida para não destruir com seus sonhos, a jovem mulher não conta com essa mesma sorte, tal qual a deusa grega Cassandra, sua palavra verbalizada não é creditada, sua voz não é ouvida e, sim, silenciada.

Embalado por uma trilha sonora nostálgica de clássicos da música pop do final da década de 1990 como  "2 become 1", do grupo inglês Spice Girls ou "Toxic" da cantora norte-americana Britney Spears, o filme penetra no enclausuramento em que se encontra Cassandra. Suas vestimentas infantis, seu quarto ou seu caderno de 'anotações' (lembra a personagem Beatrix Kiddo, de Kill Bill) remetem ao período estático de sua jornada. Esse feito tão marcante em todo decorrer da narrativa é mérito da atriz inglesa Carey Mulligan, cuja entrega acachapante permite ao espectador transitar junto com a personagem em suas diversas roupagens utilizadas durante seu processo de reparação.

Emerald Fennell, também responsável pelo roteiro, expõe com precisão as inquietações em relação ao sexismo e ao patriarcado na sociedade. Os diálogos transbordam com falas machistas ouvidas costumeiramente por milhares de mulheres ao redor do mundo. Como na primeira frase dita no início do filme por três homens em uma balada: "Foda-se ela", ou outras tantas como "Quando fica bêbada daquela jeito coisas acontecem", "Olhe para mim sua vagabunda burra" e, uma das mais recorrentes ditas pela figura masculina para justificar comportamentos abusivos: "Isso é culpa sua".

"Bela Vingança", com todos os apetrechos característicos do tão em voga empoderamento feminino, não deixa de soar um tanto quanto uma visceral crônica do fracasso da mulher em lutar contra as instituições que são condizentes à privilegiar o homem. Mesmo que a heroína em questão tente-se fazer ouvir através das brechas do sistema patriarcal, qual o preço a pagar por essa transgressão?  
CineBliss*****

Ficha técnica: 

Bela Vingança (Promising Young Woman) 
Direção: Emerald Fennell
Estados Unidos, 2020
Roteiro: Emerald Fennell
Elenco: Carey Mulligan, Bo Burnham, Alfred Molina, Adam Brody, Alison Brie  

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