"O Piano" desnuda com fulgor e profundidade o desejo e o olhar ativo do feminino


Um dos maiores e mais importantes festivais de cinema do mundo que ocorreria no mês de maio, o Festival de Cinema de Cannes, na França,  anunciou o cancelamento do evento esse ano por conta da pandemia do COVID-19. À vista disso, o CineBliss selecionou para a "Jornada pelo Cinema Dirigido por Mulheres" o drama  "O Piano" (1993), da cineasta neozelandesa Jane Campion, responsável até hoje como a única mulher na direção laureada com a Palma de Ouro, prêmio de maior prestígio da Croisett.

Por meio da personagem vitoriana do século XIX Ada (Holly Hunter), a diretora expressa sua marca de um cinema de visão feminino através da exploração de conceitos da feminilidade, como por exemplo a sexualidade - conhecimento do desejo e do próprio corpo -, e como isso interfere na identidade feminina. No drama, o público é conduzido para a intimidade dessa protagonista quando ela ao recém chegar à uma ilha no sul da Nova Zelândia por conta de um casamento arranjado, depara-se não somente com as adversidades do ambiente hostil e o estranhamento do matrimônio, mas também à um despertar para o processo de auto-conhecimento.   

Já de início há o som da voz off  de Ada elucidando que sua fala é na verdade seus pensamentos, uma vez  que aos seis anos de idade sem um motivo específico parou de verbalizar palavras e refugiou-se no silêncio. Sua única ferramenta de expressão tornou-se o piano. Esse mesmo instrumento musical transforma-se no elemento primordial para todo o desenrolar da narrativa. Não é à toa ser o título do filme e de uma certa maneira um personagem em si.

O piano ao ancorar na nova morada junto de seu dona é abandonado à beira mar pelo recém marido de Ada, Stewart (Sam Neill). Logo, o instrumento é comprado por George (Harvey Keitel), vizinho e amigo de Stewart, cujo intuito num primeiro momento é ter aulas de piano. Ao lado da filha Flora (Anna Paquin), Ada é obrigada à ser a professora desse homem branco, embora este tenha incorporado os costumes e valores dos nativos da ilha, sendo visto por seus pares como um 'selvagem'.

Ao lado desse sujeito masculino com ares de *Sir. Gawain (personagem do conto "Os Cavaleiros da Távola Redonda" do Rei Arthur que conseguiu solucionar a pergunta sobre o que as mulheres mais querem no mundo), Ada aventura-se no direito de exercer a sua própria vontade e permite-se a afirmação do desejo do seu corpo feminino e não na recusa, de modo a desconstruir a dicotomia feminino/passivo masculino/ativo. A satisfação da libido possibilita a personagem transcender o seu silêncio e, consequentemente, as amarras que lhe prendem aos grilhões do patriarcalismo.

Por outro lado, a relação extraconjugal enfurece o marido e, como medidas para 'controlar' sua esposa opta por atitudes visivelmente frutos da dominância patriarcal. Diferentemente de George simbolizado pela figura masculina citada acima, cuja a característica é marcada por ser um homem positivo com coração que permite a mulher sua soberania, Stewart caminha para a crueldade reverberando o personagem do **Barba Azul do conto infantil de mesmo nome.

Orquestrada por uma trilha sonora visceral e impactante cuja função é esculpir o balé das emoções de Ada, "O piano", carrega em suas entranhas a potência desbravadora de uma personagem feminina com olhares ativos no auge de sua subversão ao sistema dominante masculino. Talvez por esse motivo, esse tipo de evento só possa ser vivenciado na narrativa em uma localidade embriagada pela natureza, pelo instinto e pelo ideal de Novo Mundo, onde a interferência do homem branco encontra-se ainda em um estágio inicial.

Jane Campion, cuja filmografia perpassa por outros títulos conhecidos como "Brilho de uma paixão" (2009), "Em carne viva" (2003) e "Retrato de uma mulher" (1996), possibilita lançar luz sobre meios de desconstruir a forma como a mulher é representada no cinema - em geral de modo passivo e submissa ao homem- , para uma reinvenção dessa representação em que seja considerada a subjetividade e a identidade feminina. 
CineBliss*****




Ficha técnica: 

O Piano (The Piano)
1993, Austrália/Nova Zelândia/ França
Direção: Jane Campion
Roteiro: Jane Campion
Produção: Jan Chapman
Fotografia: Stuart Dryburgh
Elenco: Holly Hunter, Harvey Keitel, Anna Paquin, Sam Neill
*Para saber mais sobre o conto de "Lady Ragnell and Gawain" ler: "A jornada da heroína", de Maureen Murdock.
**Para saber mais sobre o conto do Barba Azul ler: "Mulheres que correm com os lobos", de Clarisse Pinkola Estés.

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