CineBliss lança uma jornada pelo cinema dirigido por mulheres com o filme "O mundo é o culpado", de Ida Lupino


O CineBliss lança a partir de hoje uma viagem pelo universo desconhecido da cinematografia dirigida por mulheres que por inúmeros motivos foram sufocadas, repreendidas ou simplesmente esquecidas pelos grilhões da dominância patriarcal, tanto em Hollywood como em outras partes do mundo. Para iniciar essa jornada, o blog selecionou a potência estética, narrativa e provocadora do filme "O mundo é o culpado", de 1950, da diretora inglesa radicada nos Estados Unidos, Ida Lupino. A mesma atuou em diversas frentes no cinema americano tanto como atriz, produtora, roteirista e diretora, sendo responsável por várias obras, tais como "O mundo odeia-me" (1953), "O Bígamo" (1953), "Quem ama não teme" (1949) e "Laços de Sangue" (1951). 

Em "O mundo é o culpado", a cineasta introduz de um modo resoluto um tema trágico para a maioria das mulheres: o estupro. Esse evento cruel e violento é exposto em uma situação corriqueira, mas que é alvo de medo para muitas - o caminhar sozinha à noite por uma rua deserta. No caso, a protagonista Ann Walton (Mala Powers), nutrida de felicidade por ter sido pedida em casamento é obrigada à sair tarde do trabalho. No trajeto de volta para casa, é surpreendida por um homem que à persegue pelas ruas escuras.

À partir desse desarranjo tenebroso do destino, Ann mergulha nas profundezas do seu âmago e abandona seu futuro ao lado do noivo para perambular por locais até então desconhecidos. Os olhares de julgamentos de sua cidade local, transformam-se em um estopim para essa fuga descontrolada. 

Um dos méritos do filme é dar voz para uma protagonista feminina expor o trauma da agressão sofrida de um modo incisivo, em plena década de 1950. O assunto que até hoje não é debatido como deveria, é trilhado na narrativa com destreza evitando cair em clichês estereotipados. Pelo contrário, observa-se a sutileza feminina na condução do drama por escolhas que buscam iluminar o quão solitário, lento e agonizante é o processo da personagem frente à esse tipo de violência. Isso pode ser visto na cena em que Ann encontra-se em uma festa e um homem à convida para dançar. Ao recusar o convite, esse mesmo sujeito inicia uma aproximação mais austera na jovem o que a faz relembrar do abuso sofrido no passado.

Por meio de uma fotografia preta e branca, e um jogo elaborado de sombras - típica do filme noir -, a história trilha uma fria análise comportamental da banalidade do ato da agressão física cometida pelo sujeito masculino, em um meio incrustado de normas patriarcais. Por outro lado, expõe a fragilidade e a vulnerabilidade da personagem Ann, sem titubear no melodrama. 

A cena do estupro em si não é mostrada - provavelmente por conta dos códigos de conduta que operavam em Hollywood na época -, mas o modo como Ida Lupino conduz a perseguição do homem em direção à Ann e como insinua o ato colocando em primeiro plano um objeto fálico, demonstra a maestria da diretora em criar um elevado teor de tensão e suspense, ao mesmo tempo que impulsiona o público à identificar-se com a protagonista.

Ida Lupino, segundo *Martin Scorsese: "esforçou-se para questionar a imagem passiva, frequentemente decorativa da mulher nas produções hollywoodianas. Ela estava adiantada quanto ao movimento feminista... Seus filmes estudavam as almas feridas de uma forma bastante meticulosa e descreviam o lento e doloroso processo com a qual as mulheres se debatem com seu desespero, para dar novamente sentido às suas vidas... É uma obra marcada pelo espírito da resistência, com um sentido extraordinário de empatia pelos corações partidos". 

O filme pode ser visto pelo canal do YouTube ( o link encontra-se abaixo), mas sem legenda em português. 
CineBliss*****
 


Ficha técnica: 

Outrage (O mundo é o culpado)
Estados Unidos, 1950
Direção: Ida Lupino
Roteiro: Ida Lupino, Collier Young, Marvin Wald
Produção: Collier Young, Marvin Wald
Elenco: Mala Powers, Tod Andrews, Robert Clarke  
*Trecho extraído do catálogo "CCBB - Scorsese", Rio de Janeiro, 2019. 

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