"Café com Canela" embriaga a alma com afeto e generosidade ao tratar do ciclo da vida-morte-vida

 
 
A "Jornada pelo cinema dirigido por Mulheres", projeto do blog CineBliss para divulgar filmes feitos por diretoras mulheres ao redor do mundo, tem o privilégio de destacar esta semana a narrativa visceral do Recôncavo Baiano "Café com Canela" (2017), dos realizadores Glenda Nicácio e Ary Rosa. A primeira  desponta como a segunda mulher negra na direção de longa-metragem no Brasil, após o vácuo de 33 anos  do filme "Amor Maldito" (1984), de Adélia Sampaio. Enquanto tal, a dupla de cineastas formados em 2010 na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano), são também responsáveis por outras duas obras arrebatadoras: "Ilha" (2018) e "Até o fim" (2020). Ambas sem data de lançamento no circuito comercial, mas que acarretaram burburinhos primorosos pelos festivais de cinema internacional e nacional.

Em "Café com Canela", primeiro longa-metragem dos dois, a regionalidade e a desconstrução da representação negra em narrativas cinematográficas tornam-se nas forças impulsionadoras desse drama de vidas tragadas pela dor do luto e pelo fulgor de possíveis recomeços. Centrada na cidade de Cachoeira, Bahia, o público é introduzido na jornada de duas personagens negras de gerações distintas, Margarida (Valdinéia Soriano) e Violeta (Aline Brune), aparentemente sem nenhum tipo de vínculo familiar ou afetivo.

Embora a primeira carregue em seu âmago uma tristeza sem fim, e a outra, esbanje vivacidade e afeto, ambas são repositórios de cicatrizes incuráveis que encontram entre si um despertar para o processo de cura. Esse entrelaçamento de trajetórias entre as duas personagens acontece no filme de uma maneira poética, amorosa e feminina. Por meio da empatia de reconhecer a dor do outro e solidarizar-se com esse sentimento, Violenta fuça uma brecha no coração de Margarida para que essa 'volte a respirar'. E, nada mais simbólico para esse acordar para a vida do que tomar um café e, melhor ainda, com canela. 

Enquanto tal, "Café com Canela" orquestra com sensibilidade a sinfonia do ciclo da vida-morte-vida, simbolizado pelo destaque dado a roda. O filme lapida com triunfo esse bailado da existência humana, ora o vazio interno e a tristeza sem fim, ora a generosidade, a alegria e o amor.

No quesito técnico, os dois realizadores experimentam com gracejo os estilos cinematográficos, seja pelo uso do flashback por meio apenas de diálogos e não de imagens como usualmente acontece, seja por proporcionar um olhar subjetivo de um cachorro. Elementos estes que possivelmente reverberam a ânsia de Glenda Nicácio e Ary Rosa em transcenderem com tempero brasileiro certos padrões ditados pela indústria do cinema. 

Com um elenco formando praticamente por personagens negros, observa-se em todo desenrolar da narrativa uma busca por reinventar o papel da mulher negra tirando-a de possíveis estereótipos negativos - status marginais ou em contraste com a feminilidade branca -, e recolocando-a numa posição de resistência simbólica, ou seja, em que ela possa ser vista tanto como mulher quanto como pessoa. Algo que geralmente fora negado às mulheres negras na cinematografia.

CineBliss*****
É possível assistir "Café com Canela" gratuitamente pelo canal do YouTube. Ou pelo streaming da Amazon Prime.  

Ficha técnica:

Café com Canela (Café com Canela)
Brasil, 2017
Direção: Glenda Nicácio e Ary Rosa
Roteiro: Ary Rosa
Produção: Ary Rosa, Glenda Nicácio, Ohana Sousa
Fotografia: Glenda Nicácio
Elenco: Aldri Anunciação, Aline Brunne, Antônio Fábio, Arlete Dias, Babu Santana, Valdineia Sorian

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